Autor: André Borsatti
A ascensão da Inteligência Artificial Generativa (IAG) representa uma das maiores revoluções tecnológicas do século XXI. Modelos como os LLMs (Large Language Models), incluindo o GPT da OpenAI, o Gemini da Google, o LLaMA da Meta, entre outros, transformaram radicalmente a forma como interagimos com sistemas computacionais. No entanto, esse avanço traz consigo desafios significativos relacionados à privacidade e à proteção de dados pessoais, exigindo uma reflexão profunda e multidimensional sobre práticas, políticas e regulamentações.
A essência da Inteligência Artificial Generativa reside em sua capacidade de aprender padrões a partir de vastos volumes de dados, muitos dos quais coletados de fontes públicas, mas também, potencialmente, de fontes privadas ou sensíveis. A questão crítica é que, mesmo quando treinados com dados publicamente acessíveis, esses modelos podem inadvertidamente reproduzir, memorizar ou inferir informações pessoais, expondo indivíduos a riscos antes impensáveis.
A preocupação com a privacidade emerge em diversos aspectos. Primeiramente, há o risco de vazamento de dados sensíveis durante as interações com modelos de IAG, como acontece em casos em que usuários compartilham informações privadas inadvertidamente. Modelos sofisticados podem reter fragmentos dessas informações, gerando preocupações sobre o armazenamento e reutilização não autorizada de dados pessoais. Além disso, existe o fenômeno do “inference attack” ou ataque por inferência, no qual agentes maliciosos podem explorar o comportamento do modelo para extrair informações confidenciais presentes nos dados de treinamento.
Um exemplo emblemático ocorreu em 2023, quando pesquisadores demonstraram a capacidade de extrair números de cartão de crédito e outras informações sensíveis de modelos generativos de linguagem, apenas manipulando os prompts de maneira estratégica. Esse episódio reacendeu o debate sobre os limites éticos e técnicos do treinamento de modelos baseados em dados massivos e não curados.
Em 2024, o número de vazamentos de dados aumentou quase 500% em comparação ao primeiro semestre de 2023, totalizando 1,1 bilhão de casos. O número de vítimas afetadas subiu mais de 1.000%, atingindo um bilhão no segundo trimestre de 2024.
O Brasil registrou um aumento impressionante de 24 vezes no volume de contas violadas em 2024, totalizando 84,6 milhões de contas comprometidas. Isso coloca o país entre os mais afetados por vazamentos de dados no mundo.
Entre janeiro e agosto de 2024, o setor público brasileiro registrou 4.588 casos de brechas de segurança, representando um crescimento de 1.314% em relação aos 349 incidentes reportados em 2020.
Outro ponto de tensão é o consentimento. A maior parte dos dados utilizados para treinar modelos generativos foi extraída da internet sem o consentimento explícito dos indivíduos, desafiando o princípio da autodeterminação informacional consagrado em legislações como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira. Essas normativas impõem obrigações claras sobre a coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais, mas ainda carecem de especificidade quando se trata de sistemas de IA generativa, cuja natureza difusa e massiva torna quase impossível identificar todos os titulares de dados envolvidos.
Os riscos não se limitam aos usuários finais. Organizações que adotam soluções baseadas em IA generativa também precisam enfrentar desafios relacionados à proteção de dados corporativos. Muitos modelos funcionam sob regimes de aprendizado contínuo e podem inadvertidamente incorporar informações confidenciais transmitidas por funcionários ou sistemas internos, aumentando a exposição a vazamentos ou violações de propriedade intelectual.
Diante desse cenário, a comunidade internacional busca respostas tanto no campo técnico quanto no jurídico. Do ponto de vista técnico, pesquisadores e engenheiros têm investido em técnicas de “privacy-preserving machine learning” (PPML), que visam minimizar os riscos de exposição de dados sensíveis. Entre essas abordagens destacam-se o “differential privacy” que introduz ruído estatístico nos dados, dificultando a identificação de indivíduos e os métodos de “federated learning”, que possibilitam o treinamento de modelos de forma descentralizada, mantendo os dados na origem e reduzindo sua exposição.
Por outro lado, a regulamentação ainda caminha a passos lentos frente à velocidade do avanço tecnológico. A União Europeia lidera esse movimento com o desenvolvimento da AI Act, legislação pioneira que visa estabelecer requisitos legais para sistemas de inteligência artificial, incluindo disposições específicas sobre transparência, segurança e mitigação de riscos. O Brasil, por sua vez, discute o Projeto de Lei 2338/2023, que busca criar um marco legal para o uso da IA, estabelecendo princípios como o respeito à privacidade, à proteção de dados e à não discriminação algorítmica.
Especialistas defendem que a abordagem ideal deve ser híbrida, combinando avanços técnicos que assegurem a privacidade desde a concepção dos sistemas (“privacy by design”) com regulamentações robustas e eficazes, capazes de responsabilizar os atores envolvidos e proteger os direitos fundamentais dos indivíduos.
A transparência emerge como um princípio basilar nesse contexto. Modelos de IAG devem ser desenvolvidos e implementados de forma a permitir a auditabilidade e a explicabilidade de suas decisões, evitando o fenômeno conhecido como “caixa-preta” algorítmica. Apenas por meio de processos claros e compreensíveis será possível garantir que esses sistemas respeitem os direitos dos titulares de dados, promovendo uma relação ética e segura entre humanos e máquinas.
O debate ético é igualmente fundamental. A utilização de IAG para fins maliciosos, como a criação de deepfakes ou a automatização de golpes cibernéticos, agrava ainda mais as preocupações com a privacidade e a segurança. A facilidade com que modelos generativos podem criar conteúdos falsos, mas altamente verossímeis, representa uma ameaça concreta à integridade informacional, potencializando práticas como o “phishing” e a manipulação de opinião pública.
Neste cenário complexo, as organizações devem adotar uma postura proativa, investindo não apenas em tecnologias de proteção, mas também na educação e conscientização de seus colaboradores e usuários sobre os riscos e boas práticas associadas ao uso de sistemas baseados em IA generativa. A construção de uma cultura organizacional pautada pela ética, pela responsabilidade e pela segurança da informação é indispensável para mitigar os impactos negativos e potencializar os benefícios dessa poderosa tecnologia.
Por fim, é importante reconhecer que a privacidade na era da IA generativa não é um obstáculo ao progresso, mas um requisito essencial para que a inovação seja sustentável e benéfica para a sociedade como um todo. A proteção de dados deve ser entendida como um direito humano fundamental, que deve ser preservado mesmo diante das mais disruptivas transformações tecnológicas.
Como sociedade, estamos diante de um momento decisivo: ou conseguimos construir um arcabouço normativo, técnico e ético que assegure a privacidade e a proteção de dados na era da IA generativa, ou corremos o risco de comprometer valores fundamentais que sustentam a confiança nas instituições e na própria tecnologia.